Acordou num sobressalto, e sentou-se na cama em que dormia. Os olhos ainda estavam embaçados. E a penumbra no quarto não permitia ver nada. Uma réstia fraca que penetrava pela veneziana permitiu entrever a parede à sua frente, revestida do papel de parecia já ter visto. Na parede, retratos fotográficos em preto e branco. Mais acinzentados e amarelados que em branco. Foto que ele começou a reconhecer. Lá, na ponta, ao alto, a figura daquele chinês. Bigode fino, gola alta do quimono de seda. Passou a mão pela sua testa que suava. E continuou a passar a mão pelo cabelo. E foi sentindo os fios finos e longos do seu cabelo que, atrás junto à sua nuca, pendia numa longa trança. Suou frio. E uma sensação estranha penetrou seu coração. Sentiu-se jovem andando por paisagens desconhecidas e carregando uma mala por longas estradas. Viu-se num navio. Muitas e enormes velas brancas num mar sem fim. Viu- se com alguns outros iguais a ele andando por um porto, cheio de pessoas de traços e cor de pele diferente, falando uma língua que nunca ouvira. Mas ele ouvia dentro dele: Shing, Shing´ Ling.
“Viens ici, Julia, s’il te plaît.” E ele atendeu ao chamado como se aquela língua lhe fosse comum. E era na sua infância. Incomum era o vestido rosado de tafetá que cobria seu corpo. Esse corpo que agora não era mais de uma mocinha, porem já idoso. E sentiu saudade do seu pai que teve de cortar a trança e vestir casaca. E da sua delicada mãe. Madame Duboc, sim, lembrou-se como a chamavam. A gritaria das crianças lembrou-lhe tinha que colocar disciplina no pátio de sua escola, que patrioticamente dera o nome de Sete de Setembro. Ele sentiu a responsabilidade de ser Dona Julia, viúva muito jovem que teve de ser professora e dona da própria escola. Cansado, sentou-se a banqueta do piano, dedilhou algumas notas, e fixou o olhar num dos candelabros dourados que serviam para iluminar as partituras postas contra madeira negra toda entalhada do piano. Deu um suspiro. Quantas vezes estivera sentada ali, ao lado do seu marido, que tão jovem se fora. Como era bonito, garboso, cheio de ideias e de ideais. Porque tivera de entrar para a política. Será que arrumara tantos inimigos. Seriam da maçonaria?
Sentiu-se inflamar, e seu pescoço, tenso, já não cabia no colarinho alto e duro que se elevava da casaca. Sentiu sua mão erguer-se com o dedo em riste, e derramar palavras – que ele não entendia bem – mas que pareciam afirmar a necessidade de uma república. Ouviu alguns aplausos. Mas muitos apupos. Sentiu uma tristeza imensa por ter deixado tão jovem e de forma tão repentina a sua mulher viúva e órfãos os seus cinco filhos. E não lhes deixara mais do que o seu De Souza Ribeiro. E a um dos seus filhos, como Adão, deu seu sobrenome, e o nome de Abel.
Seu corpo se transmutava de novo. Tinha agora os olhos quase verdes, pele morena, cabelos ondulados, era bem mais alta que as outras amigas e o coração cheio de bondades. Era de família antiga, que se perdia no tempo. E no seu tempo, casava-se cedo. E assim foi. A que era Gabriela ficou só “ Lalá”. Casou-se cedo. E mais cedo ainda-poucos meses após as núpcias – sentiu a dor da morte levar seu marido. Pouco mais de uma adolescente e já viúva! Sentiu a perda, a ausência, a desesperança. Até que um dia, por sob sua janela, um Abel passou por ela. Ele lhe apresentou os seus respeitos. E ela dedicou a ele o que restava da sua vida. E isso pelo resto da sua vida. Cinco filhos criados, muitos netos, agora a doce vovó Lalá, octogenária, viu aquele que lhe dera uma nova razão de vida, por toda sua vida, partir. Inconformada, mas dócil como sempre fora, poucos dias depois resolver unir-se a ele, para que lá ele não ficasse sozinho. E como um passarinho, mas sem um pio, suspirou pela ultima vez.
Suas mãos agora, agilmente, movimentavam uma agulha toda diferente, que ia e vinha entre as tramas do tecido de uma meia de seda. A cada movimento, o fio puxado retomava a forma, e o rasgo desaprecia. Na mesinha ao lado da poltrona, repousava a “Toutinegra do Moinho”, um dos vários livros que passaram por ali. E ela ouvia no Radio, sintonizado na Radio São Paulo, a voz calma e conselheira da “Sarita Campos”. Era o seu fim de tarde, para logo mais ouvir a “Hora da Ave Maria”. Benedictis horis. Benedicta es.
Nessa calma, já não se lembrava de sua infância atribulada. Seu pai, de quem não conseguia lembrar, dele só lembrava os medos e as fugas.
Mais uma vez ele sentiu o vento no rosto e seu rosto agora tinha longa barba, que ia até abaixo do pescoço. O vento marítimo aumentava com a velocidade do vapor que cruzava o Atlântico em busca de nova vida para a ele sua família. A ansiedade tomava conta do seu peito. “Como seria esse Brasil? Dizem que falam mesma língua. Quase a mesma.”. “Vou comprar uma terra e vou plantar. Se já fui capaz lá, serei capaz cá”. Com esses pensamentos, sentiu o lusitano de seu nome: “Nunes” e não “Nuñes”, que esse é dos espanhóis. E com a Maria vamos criar nossos filhos saudáveis, saudáveis e fortes. E foram muitos. E entre eles a pequena e altiva, que justificava o Augusta, seu nome, a quem José Amâncio,o Nunes, e na Nuñes, seu pai, resolveu entregá-la em casamento a um Gomes Soeiro, senhor de terras e matas.
Sentiu um calafrio de medo. No seu quarto, Augusta deitada ao lado da cama da irmã, sentia medo. Medo de casar. Não queria ir embora da casa dos pais. Eram severos, mas seus pais. Ela tinha pouco mais de 14 anos. E iria se casar com o Senhor Gomes Soeiro, como seu pai lhe ordenara. Não sabia bem o que era casar, nem o que deveria fazer ou deixar de fazer. Em poucos meses, casada, foi levada pelo marido para uma das fazendas de extração de madeira. Só homens, escravos, feitores, mulas, força bruta. Uma, duas, três filhas. Em três anos, três filhas. Não suportou mais. Quando a filha mais nova nem engatinhava, fugiu com as três filhas, sem saber por que caminhos. Mas conseguiu voltar para segurança da casa do pai. Mas não por muito tempo. Porque Dura Lex, Sede Lex. O pátrio poder ao pai pertence. Quem manda na família é o pai. E faça-se Justiça. E juiz determina a busca e apreensão das filhas, para lhes entregar ao pai, pois a mãe delas abandonou o lar. E isso era crime suficiente para perder a guarda das filhas.
O medo e a vontade de chorar tomam seu corpo. Sente-se imobilizado na cama. Ruído de passos em marcha, latido de cães, cascos de cavalo, gritos de aviso. Um sino bate como alarme. Eram os sitiantes vizinhos que colocavam em ação o plano de proteção, sem poderem ser presos. Ela é quase uma neném, arrancada do berço pela mãe, que agarra seu pequeno corpo, e corre. Corre fugindo da soldadesca. Os soldados capturaram, a mando do juiz, uma das irmãs na primeira investida. Pouco tempo depois, a outra havia sido capturada. Sua mãe continua correndo, agora noite adentro. E isso se repetiu. Aproximação da soldadesca, sinais de alarme, o soar do sino, e a fuga desesperada para não Augusta não perder a última filha. Que em homenagem ao pai, que agora mandava caçá-la, recebera o nome de Benedicta. Mas que jamais foi pega, que jamais voltou às fazendas, que jamais reviu às árvores sendo abatidas. Mas reviu as irmãs, somente quando essas já eram adolescentes e o pai resolveu devolvê-las. Aquele ambiente não era para mulheres. Benedicta lhes ensinou a ler e escrever e a tocar o violino, que nunca aprenderam. E do pai, só lhe restou o medo dos soldados que queriam prendê-la. Benedicta esset. Não gostava do seu nome.
Mas continuou a cerzir as meias e ouvir a Hora da Ave Maria. Logo depois encerrou cozimento para ir coser o jantar.
Seu quarto escuro agora era escuro, mas não era um quarto. Tinha um odor de vários cheiros, mas todos ácidos. O ar não era agradável, parecia que havia um gás em todo o ambiente. Sua mão na total escuridão, automaticamente, tocou num botão junto à parede atrás do balcão. Uma luz vermelha se acendeu iluminando com uma luz diabólica o ambiente: numa prateleira na parece, uma fileira de frascos, com líquidos e pós de cores diferentes, com etiquetas de papel. Sobre o balcão, uma série de bandejas com líquidos, e uns instrumentos de metal. Uma grelha de metal sustentava vários vidros planos, como pratos a secar numa pia. Próximo a parede, um fio metálico com ganchos, alguns prendendo imagens de papel, como um varal de roupas. Uma máquina com um fole de sanfona pia com torneira, e mais vários apetrechos eram o ambiente em que seu quarto se transformara. Um laboratório de revelação de fotografias. Essa solidão – da qual ele gostava – às vezes o levava a relembrar seus tempos de criança. Da aventura de fugir das bombas lançadas sobre o quartel próximo a sua casa por um avião durante a revolução. Da sua farda de Paulista de 1932 – perdemos, mas nosso ideal permaneceu – dos bailes no clube lítero-musical, com seus irmãos e Irma, o conhecimento e o namoro com sua mulher. O seu relógio com ponteiros fosforescente indicavam já ter passado a hora de sair e encerrar. Hora de tirar o avental. E sair daquela gruta para a luz do dia, ou luar da noite. Todas as revelações das chapas, negativos e cópias estavam feitos. Agora, era se revelar para a sua vida.
O jantar já estava cosido e pronto, como todos os dias. O jantar com a mulher, filhas e filho era um ritual. Compensava as horas no laboratório e na operação da grande máquina de fotografar chapas, para litografia e impressão. Depois, sentar-se na poltrona, concluir a leitura do jornal que iniciara de manhã, e ouvir o noticiário do repórter e do grande jornal falado. Um pouco de musica clássica da radio gazeta, mais uma conversa com a mulher, na tranqüilidade e na paz do cotidiano. Cotidiano sem sobressaltos, sem fugas, sem aventuras, apenas cotidiano. Olhou para seu filho que dormia tranqüilamente no berço ao lado. Suspirou fundo. O rádio transmitia um intermezzo, e sob seus acordes, fechou os olhos e dormiu, e sonhou.
E acordou num sobressalto porque o rádio tocava uma musica estranha. Completamente diferente, em ritmo, melodia e acordes. O berço não mais estava lá. O que era aquilo? Seus olhos revelaram o rádio-relógio, que ligara na hora marcada.
Olhou em volta e era o seu quarto. O seu quarto de sempre. TV na parede. Nada mudara. Ah. Sonhara? Não. Não. Vivera? Também não. Quem eram? Quem seriam? Sentiu-se acolhido num berço. São eles em mim?