– I –
Edméia era professora. E invejava a capacidade de outros professores que faziam seus alunos rirem. Ela tentava, mas não conseguia ser engraçada. E dava aula de literatura. E uma das categorias de literatura eram os contos, os contos breves, e as anedotas (estas, em literatura, não tem o sentido de, necessariamente, serem de humor e piadas).
Mas Edméia continuava tentando fazer seus alunos rirem, porque sabia que um dos artifícios da pedagogia eram o humor.
Humor gera alegria e alunos alegres aprendem melhor. E o ambiente da aula fica mais leve, mais propício para o diálogo, a maior participação, ao melhor relacionamento entre os alunos e uma porção de outras virtudes.
Quando em aula Edméia ouvia o ruído de risadas, vindos de outras salas de aula, ela se preocupava: sua classe nunca ria. Seus alunos permaneciam sempre em silêncio, independente do que ela falasse e como falasse.
De preocupação isso acabou virando primeiro uma admiração pelos professores que sabiam fazer humor.
Mas, depois, isso virou uma certa inveja. Sim, começou a ter inveja, inveja intelectual bem entendido, dos colegas professores que faziam suas classes rir.
Na sala dos professores, começou a observar aqueles professores que ela sabia que faziam suas classes rirem. Mas eles eram iguais a todos. Não percebia nenhum traço no comportamento deles que pudesse levá-la a concluir que tinham algo de diferente, algo de especial.
Observou e concluiu: aqueles que ela considerava como os que sabiam fazer rir, não faziam os colegas professores rirem mais que os outros.
Na sala dos professores, embora fossem poucos minutos por dia, não mais que meia hora antes do inicio das aulas, e não mais que quinze minutos no intervalo, eles conversavam e muito.
Poucos usavam esse tempo para alguma atividade individual – ler, escrever ou corrigir provas. Até mesmo – embora nunca ninguém tenha dito – o ato de ler quando estavam no grupo na Sala dos professores, não era muito bem acolhido. Sem explicitar um único comentário, as expressões não eram de aprovação. A conversa seria desinteressante? O grupo não lhe convinha? Ninguém seria mais interessante do que a leitura? Seria timidez ou desconsideração para com os colegas. Sala de professores tem disso.
Edméia percebeu que isso a incomodava. Depois, essa sua incapacidade de fazer rir não era mais apenas um desconforto, passou a ser um sofrimento.
Mas Edméia não era uma mulher fácil de se render.
Tinha um conhecimento muito bom de literatura. Mas concluiu que isso não bastava, e passou a pesquisar melhor os autores e obras que tinham o humor como uma característica.
– I I –
Claro, começou com Gregório de Matos, é claro. Conheceu melhor o famoso “Boca do Inferno” e viu que nem Jesus escapou da sua ironia.
Bocage seria uma escolha óbvia: e foi direto às suas obras satíricas, às burlescas e, um tanto contra vontade, às eróticas.
Suas pesquisas voltaram no tempo, lá na antiguidade foi rever Petrônio, e até na religiosa Idade Média viu as sátiras, fábulas e cantigas de escárnio.
Do Renascimento relembrou os contos do Decameron, e até de François Rabelais soube que ele escrevia contos de humor, como o Gargântua e Pantagruel, para consolar os enfermos – ele era médico e achava que o humor contribuía para a cura.
Ora, se o humor servia como remédio, porque não haveria de servir para ajudar nas suas aulas? Edméia passou horas e horas, estudando século a século.
Capturou, analisou, classificou tudo que havia de humor na literatura ocidental, para poder usar nas suas aulas para, enfim, arrancar uma gargalhada. Ou uma risada. Ou pelo menos um sorriso.
Do barroco destacou, da Espanha, Pedro Calderón de la Barca e Tirso de Molina e os testos dos autos, dos jogos de gênio, das sátiras. Eram realmente gozadas. Ela as usaria nas suas aulas.
Depois, revisitou Voltaire e Molière. Impossível não achar graça em suas estórias.
Caramba, ela estava se sentindo municiada para uma guerra. Porém avaliando melhor seus alunos, achou que isso tudo soaria um tanto antiquado, apesar do humor ser sempre.
Mas não queria parecer ultrapassada. Foi até ver, na TV por assinatura, gravações de Stand up pra identificar alguns dos textos interpretados que pudessem ser colocados na categoria literatura. Concluiu que nem na literatura nem na dramaturgia poderia incluí-los sem incorrer no politicamente incorreto ou moralmente de mau gosto.
Pulou para livros dos tempos atuais. Haveria humor na literatura da língua portuguesa, na literatura brasileira, sem descer ao subsolo do “correntemente deseducado”? Isso ela não faria.
Continuou sua pesquisa e buscou livros que tivessem humor, e em nossa lingua.
Isso certamente estaria mais próximo dos seus alunos. E foi ao Stanislaw Ponte Preta, ao Millor Fernandes e outros colunista. Viu o lado literário de Jô Soares e Xico Anízio. E os cronistas.
Ah, os cronistas – concluiu ela – era a categoria que mais sintetizava o humor nacional – como Rubem Braga, Nelson Rodrigues, até mesmo o Barão de Itararé. João Ubaldo Ribeiro e Luiz Fernando Veríssimo entraram na lista com louvor.
E aproveitou a antologia do Flavio Moreira da Costa. E riu, já com o titulo dos livros. “999+1 piadas”. E mais ainda com o sobrenome dos autores: “Pinto”, “Ramalhinho”, e “Castro”.
E buscou o humor nos livros do português Ricardo Araujo Pereira (“Estar vivo aleja”, “A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar”, “Reaccionário com Dois Cês – Mixórdia de Temáticas”).
Até as crônicas do “Macaco Simão” entraram na sua pesquisa.
Finalmente ela estava preparada para a guerra mundial contra o mau humor dos alunos.
– I I I –
Estudou com afinco e preparou o programa de aulas, sem mencionar seu objetivo, é claro.
Resolveu intitular a série que apresentaria aos alunos como o título de “Estudo dos Textos Alternativos à Literatura séria, nos cânones da estética predominante de cada século”.
Uau! Exclamou Edméia após conceber esse título. Digno de uma Tese de Doutorado pensou. Pensou melhor: de uma Dissertação de Mestrado! Pensando mais um pouco, concluiu: Um Ensaio, já estaria bom. E sorriu.
Armada até os dentes, segura pelo conhecimento que obtivera de tantos estudos e pesquisas, confiante no resultado que iriam obter, antevendo já os rostos dos jovens iluminados com sorrisos e finalmente soltando gargalhadas, levantou-se rapidamente ao soar a campainha chamando para o início da primeira aula.
Ouviu o eco dos seus passos firmes pelo longo corredor que a levava até a sala C5.
Iniciou a aula como de costume, passando alista de presença, não sem antes cumprimentar regularmente os alunos, como de costume, só que desta vez percebeu-se ostentando um sorriso.
Mas parece que nenhum aluno percebeu qualquer mudança.
E também como de costume, fez uma breve recapitulação da última aula, e solicitou que os grupos formados preparassem um texto resumindo os entendimentos que tiveram sobre os temas abordados, citando-os e sugerindo um processo para a análise e a exposição.
E reservou o tempo final dessa primeira aula para anunciar o próximo capítulo do programa.
E anunciou: vamos estudar os Textos Alternativos à Literatura séria, nos cânones da estética predominante de cada século.
Reação dos alunos: nenhuma.
Ela perguntou: “alguma pergunta?” (e já preparada para a resposta).
Silêncio. Um, dois, três, cinco segundos, dez segundos, e silêncio. Até que uma mão se ergueu no fundo da sala.
-“Pois não”!?
-“É o seguinte, Professora, desculpe a pergunta, mas acho que não entendi bem, sabe, o que a senhora disse é que… É tipo assim: “textos alternativos à literatura séria?”. Porque? A literatura toda não é toda ela séria? É uma Arte, ela, como a senhora disse no começo do curso, e temos de levar a sério. Eu tenho levado, né… Agora, se são alternativos, como podem estar dentro dos canônes que são as leis e sempre são obedecidos? E se não é seria, portanto deve estar fora, como pode estar dentro da estética? Desculpa, mestre, mas parece que não entendi direito, embora os canônes de cada período histórico, como a senhora disse, está presente na estética de todas as expressões criativas e é possível identificar a presença de cada um na repetição entre as outras expressões, quer dizer… “
A expressão dos outros alunos era de concordância, todos sérios, fazendo aceno de sim com as cabeças, e outros gestos corroborativos.
Edméia fez um sinal, e o aluno lá do fundo interrompeu sua pergunta.
– “Muito bem… É o seguinte, Luiz Henrique (ela já conhecia esse aluno, aplicado, interessado), eu tenho apresentado a vocês as obras que são consideradas as mais significativas de cada período estético-histórico, como você bem analisou na sua pergunta” (ela queria agradar os alunos, elogiando e criando um clima).”
E continuou: “Essas obras representam sim, a obediência aos “canônes” de cada período, ou melhor, acho que obedecem aos “cânones”, não é?” (e sorriu esperando sorrisos em retribuição. Nada). “Basta que Você entenda a palavra “séria” não com o sentido de grave, íntegra, honrada, honesta.”
E concluiu assertivamente: “Basta que Você a interprete como antônimo de …e num gesto largo, sorrindo, diz: “HUMOR!”
Ninguém reagiu.
E Essa foi a reação permanente nas aulas seguintes quando ela discorreu, sobre a obra de todos aqueles autores, lendo trechos, trechos cuidadosamente selecionados entre os mais humorados, os mais engraçados, os mais gozados, os mais hilários, seja lá a palavra que queiram usar!
– I V –
Não era possível. Suas aulas continuavam com o silêncio que lhe pesava no peito. E quase sentia uma dor no coração quando ouvia as gargalhadas da sala ao lado.
Edméia estava derrotada. Suas aulas seguiam conforme o programa de “Textos Alternativos à Literatura séria, nos cânones da estética predominante de cada século”.
Trechos de peças de Molière, as ironias de Voltaire, as anedotas de Bocage, os deboches de Gregório, ela se esforçava ao lê-los, enfatizava expressões até mais fortes, embora intimamente ela não as aprovasse; nem ironias sutis, nem formas mais desbragadas de humor, faziam-na ouvir uma gargalhada, uma única, que fosse.
Ela estava se deprimindo, achou até que havia emagrecido (o que era bom). Como numa luta de boxe, desigual, estava abaixando a guarda e esperava por uma toalha ser jogada, pois sentia não poder mais resistir àquela situação. Mas o técnico era ela. E ela, ela mesma, não podia se jogar a toalha e desistir.
Naquele sábado, não se enfiou nas pesquisas de livros de humor ou com humor. Simplesmente se deixou cair na poltrona da sala. E pegou o jornal que entregaram ao raiar do dia. Foi lendo sem interesse, e com menos interesse ainda o Suplemento Literário. E no Suplemento viu uma matéria que lhe chamou atenção.
“Sim, qualquer pessoa pode ser palhaço. Como qualquer pessoa pode ser médico, engenheiro, professor, jornalista, etc. Desde que estude, pesquise, desenvolva e pratique esta profissão. O palhaço de circo, ou o palhaço tradicional, ou nasceu em uma família de artistas de circo e deles herdou tal função ou é um viajante que escolheu ir embora com o circo e aprendeu com a vivência do tempo, o ofício do palhaço. No teatro, o palhaço é uma vertente do trabalho de um ator. Portanto, para nós do Grupo Operação de Riso, apenas um nariz vermelho, uma roupa engraçada e algumas piadas na cabeça, não fazem de ninguém, um palhaço”. (*)
Nossa! Ela se fascinou com esse texto intitulado “Qualquer um pode ser palhaço?”.
Com o mesmo afinco que pesquisara a literatura de humor ou com humor, foi pesquisar “Palhaço” e achou “Escola de Palhaço”. Havia não um, mas alguns cursos de palhaço. Desde iniciação a Arte da Palhaçaria (isso era um neologismo, mas ela achou graça) até “Curso de Palhaço”, que propunha “No curso, destinado a qualquer pessoa interessada na linguagem do palhaço, os alunos aprenderão dinâmicas e brincadeiras coletivas visando o entrosamento, o divertimento e a consciência de jogo do grupo. Serão propostas práticas específicas para desenvolver os fundamentos da linguagem cômica, como a vivência próprio ridículo (que naturalmente convida o riso), o olhar, a escuta, a cumplicidade com a platéia, dentre outros.(**)
Ela era “qualquer uma” e, portanto, poderia ser palhaça. Seu entusiasmo cresceu mais ainda quando viu que havia um projeto de Vivências Artísticas e um Encontro de Palhaços e uma escola regular.
Ela, muito purista em relação à língua, preocupou-se com gênero da palavra palhaço, pois em todas as matérias estava sempre no masculino. Mas, esse masculino seria usado como “gênero masculino”, ou apenas como “gênero neutro”, já que a língua portuguesa não tinha o gênero neutro como o Latim.
Estaria ela, como mulher, e as mulheres em geral excluídas dessas atividades?
Mas, Eureka! Seus olhos saltaram quando leu: “Escola de Palhaços e Palhaças” – seus olhos é que destacaram esse feminino com o negrito e subscrito.
Continuou lendo: “A oficina de iniciação à palhaçaria com Vanderléia Will que aconteceu este mês em Rio do Sul foi um sucesso. Com a parceria da Cia Zulu, retornaremos dias 6,7 e 8 de junho, com Oficina De Palhaçaria em Rio Do Sul com Vanderléia Will para dar continuidade aos estudos e treinos em palhaçaria, em busca do aperfeiçoamento e do nascimento de novos palhaços e palhaças na cidade! (****).
Edméia continuou procurando matérias, com o coração acelerado, vislumbrando uma luz no fim desse túnel quando leu: “MINISTRO PALHAÇO”. Ela gelou! Ministro Palhaço!…
Mais do que uma constatação de crítica de conotação política, aquilo a levou a uma preocupação maior, de semântica: a palavra palhaço poderia ser usada com o sentido figurado e pejorativo indicando “pessoa que não é possível levar a sério”, ou que “não merece respeito”.
Definitivamente não era seu caso, ela era uma professora absolutamente séria e extremamente respeitada, prova disso era o comportamento sempre sério de seus alunos.
Mas, continuou lendo o anúncio/matéria: “MINISTRO PALHAÇO – Formar ministro na arte do palhaço a luz da bíblia e anunciar um olhar próprio sobre a arte. O desafio de descobrir de dentro para fora o equilibro que nos leva a ser palhaço. Pureza, obediência, submissão e fé”.
– “Santo Deus, louvado seja!”
Não se tratava de Ministro de Estado, como ela pensou. Tratava-se de Ministro “Religioso”. Um tanto incrédula Edméia continuou a ler:
“E.P. M – Escola de Palhaços Missionários – Durante três trimestres de 2018 estaremos realizando nossa escola de formação de ministros em palhaçaria cristã. São três módulos, cada um com uma oficina de 8 horas de treinamento específico, mais uma prova pratica em local a ser escolhido pra que a teoria ganhe forma de experiência vivida e aplicada. Nosso objetivo é legitimar as ações já realizadas por ministros que utilizam a arte do palhaço como caminho evangelístico, porém ainda não são palhaços de verdade, visto que como toda profissão par que seja realizada de forma verdadeira é preciso capacitação específica que torne a prática e execução da arte algo verdadeiro e não indevido. Lembrando que como evangelista a verdade das praticas determinam a eficácia dela, tanto aqui como no mundo espiritual”.
Ora, se mulheres poderiam, se qualquer pessoa poderia, se até pastores ou missionários poderiam, porque ela, professora, não poderia?
Foi como um céu nebuloso que, num só instante, tendo dissipadas todas as nuvens, foi dominado por um sol que voltou a brilhar e iluminar, do nascente ao poente, todo o firmamento de seus pensamentos.
Naquele mesmo instante decidiu: vou fazer a escola de palhaços.
– V –
Na segunda feira de manhã já entrou em contato com as escolas de palhaço e já se matriculou naquela que lhe parecer mais eficiente para fazê-la uma palhaça, dominando todas as técnicas do fazer rir. E mataria seus alunos de gargalhadas. Eles, por fim, iriam morrer de rir!
Com a pertinácia que tinha pautado toda a sua carreira acadêmica, Edméia não perdeu nenhuma aula, na verdade não perdeu nem um minuto das aulas, das discussões em grupo, dos laboratórios, dos exercícios, do estudo do processo do humor, enfim, estava dominando todas as habilidades do palhaço. E se sentia uma verdadeira palhaça.
E não precisava de um enorme nariz vermelho para representar.
A sua postura corporal, a posição dos seus braços, dos seus pés torcidos, das suas pernas trocadas, da gesticulação exagerada dos braços e mão e, sobretudo, a expressão facial, o olhar e o domínio dos músculos da boca e lábios, substituiriam perfeitamente não só o nariz vermelho, mas também o colarinho enorme, os sapatos tamanho 72 e a peruca desgrenhada com cabelos de espiga.
Toda aquele estudo sobre as obras literárias não tinha funcionado. Mas agora Ela era a palhaça, o verdadeiro e autentico veículo do humor irresistível.
E venceria a maior batalha da sua vida: ela faria a classe rir, rir tanto, rir mais alto e por mais tempo do que qualquer outro professor conseguira.
– VI –
Após os cumprimentos formais e depois de passar a lista de presença, começou a aula como sempre. E como de costume, fez uma breve recapitulação da última aula, e solicitou que os grupos formados preparassem um texto resumindo os entendimentos que tiveram sobre os temas abordados, citando-os e sugerindo um processo para a análise e a exposição.
Ela estava colocando em prática a táctica que havia estabelecido. Dois terços do tempo dessa primeira aula antes do intervalo, ela se comportaria como sempre. Ela havia aprendido que uma das explicações para disparar uma risada era quebrar a lógica da seqüência natural.
Então, ela deixaria bem marcada a seqüência natural, para então, quebrá-la com os truques que aprendera e exercitara na escola de palhaços.
Faltando poucos minutos para tocar a campainha indicando o início do intervalo, como havia ensaiado e re-ensaiado, ela ocupou o centro da sala de aula.
Ficou imóvel e ereta, olhando para o fundo da sala como se fosse o horizonte. Um segundo, dois, três, quatro… e, num gesto teatral, pegou de sobre a mesa as folhas com o texto que havia selecionado para essa ocasião. Um engraçadíssimo texto da Comédia DelArte.
Pegou as folhas e, truque número um, elas estavam coladas umas as outras, de maneira que quando as puxou elas formarem uma tripa de papel que se espalhou pelo chão. Nada. Nenhuma risada.
Então, num movimento rápido e mecânico, como um robô, abaixou-se para pegar as folhas, e – truque número dois – estática e curvada olhou para as folhas e olhou para os alunos, seguidas vezes. Com o corpo imóvel, girava a cabeça rapidamente como uma coruja, para os alunos, para os papéis no chão, para os alunos para os papéis no chão…
Olhos arregalados como assustados, as mãos nas ancas, as pernas excessivamente abertas completavam a figura hilária. Frustração: ninguém riu.
Edméia não se deu por vencida, pois no picadeiro o palhaço jamais se rende. Sem alterar a representação rememorou todos os ensinamentos, cada técnica, cada gag gestual.
O sinal tocou.
Aí, truque número três, ao se esticar para ficar ereta, acionou o dispositivo com o ruído de ranger de porta: “nheeeeque”. Todos ouviram. Mas ninguém riu. Levantaram-se e, como sempre, começaram a sair para o intervalo.
– VII –
Edméia ficou sozinha na sala. A frustração começou a se transformar em ira.
Antes, queria matar seus alunos de tanto rirem.
Agora, queria matá-los de verdade. Matar todos, um a um: a Marlene com o estilete em degola, o Alfredo com um tiro de revolver, o Guime com um facão, o Jairzinho com um bastão de basebol…
-“Dona Edméia, com licença, a senhora poderia ir até a sala dos professores?”. Antes que Edméia perguntasse “por quê?” com as narinas abertas e os dentes cerrados, a secretária da escola, Catarina, explicou: -“Tem uma ligação para a senhora. E parece ser urgente.”
O som dos saltos de Edméia soou ainda mais fortes pelo corredor, até a sala do professores.
-“Alô”.
-“Edméia? É a Clarice… desculpe te ligar aí…”
Edméia sentiu a voz embargada de sua irmã e pressentiu que boa notícia não era.
-“Sabe… a vovó… então… coitadinha…”
Edméia tinha adoração pela sua avó que chamava de vovozinha. Já estava com 94 anos, e embora morasse sozinha no sítio – o que preocupava a todos – ela era bem ativa, independente, fazendo todos os serviços de casa e ainda cuidando da horta e do jardim. Era elétrica. E se não bastasse fazer todos os serviços, ainda adorava brincar com as crianças da vizinhança e com seus bisnetos.
-“O que aconteceu com a vovozinha, Clarice?!”
-“Não sei como te dizer, eu sei que você adorava a vovó”…
– VIII –
O tempo do verbo “adorava” no passado, para uma professora de língua portuguesa, foi o suficiente para entender o conteúdo da notícia. Seus olhos começaram a marejar e um soluço ficou preso na garganta.
-“Como, como foi? O que aconteceu com a vovó. A minha vovozinha?
– “A dona Clotilde me contou tudo, porque ela viu tudo, sabe a dona Clotilde, a que mora no sítio vizinho, do lado do riacho?”
-“Sim, sei, a dona Clotilde, mas conta o que aconteceu com a vovozinha! Ficou doente de uma hora para outra? Foi um acidente?”
-“Então, irmã, sabe o Chano, o Chaninho? Aquele gato branco que vovó criou desde pequeninho quando deixaram ele numa caixa de sapato na porta da casa da vovó?
– Fala, Clarice, pelo amor de Deus, o que houve com a vovozinha?
-“Então, a dona Clotilde disse que o Chano fugiu e tinha subido no pé de manga do sítio o sitio do seu Osmar, aquele do outro lado do sítio da vovó. E o gatinho estava apavorado, miando como um louco e morrendo de medo do cachorro Pastor Alemão do seu Osmar. Que pulava e tentava pegar o coitado do gato. Pulava pra pegar, sabe o Brutus, aquele cachorrão policial pastor alemão do seu Osmar?… ’
-“Conta logo, Clarice, e a vovozinha? O que aconteceu?”
-“Ela ficou desesperada quando ouviu os miados e latidos e foi ver o que aconteceu e viu o cachorro quase pegar o Chano que miava desesperado. Então, dona Clarice que estava pendurando as roupas no varal viu quando a vovó saiu correndo – sabe como ela era, né – e subiu naquela pilha de telhas velhas junto a certa e tentou pular pra socorrer o gatinho, quando ela caiu sobre a cerca de arame, ai meu Deus, vovó não tinha jeito mesmo!
-“Conta, Clarice, a vovozinha se quebrou? Se machucou? Foi a perna? Ela cortou na cerca de arame farpado… aí coitadinha, minha vovozinha…”
-“Sim, ela se machucou, muito. Mas chamaram a ambulância que veio logo e a levaram pro hospital, o seu Osmar e a dona Clotilde, mas a vovó foi ainda pro hospital falando, preocupada com o Chano, veja você, toda machucada e preocupada com o gatinho… mas não resistiu…
-“Ai, meu Deus, teve hemorragia, sofreu muito?
-“Não, dona Clotilde disse que os médicos disseram que ela não sofreu. Logo na ambulância deram analgésicos ou anestésicos, não sei o que, de forma que ela não sentia dores… E eles disseram que no Hospital ela estava serena e calma, mas teve…, ai, Edméia, a vovó teve uma parada cardíaca, um enfarto, Edméia… ela morreu do coração, não da queda… (soluços), (silêncio).
-“Meu Deus, minha vovozinha, minha vovozinha, (soluções), (soluços).
-“Ela era forte, muito forte, minha irmã, mas ela já tinha 94 anos… Os médicos disseram que era inevitável, pela idade dela… um susto desses, uma emoção tão forte e o coração não resistiu… vem pra cá, Edméia,… eu preciso de você… ela também…
-“Eu vou, eu vou, eu vou já, minha vovozinha, eu vou já (soluços)…”
– IX –
A campainha do sinal do intervalo soou estridente junto à sala dos professores.
Todos olhavam quando perceberam que Edmédia chorava, apesar de procurar esconder o rosto com o echarpe, e não dar mais do que soluços baixinho. Seus olhos se incharam e estavam vermelhos.
Edméia saiu sem dizer nada. Foi ao toalete das professoras para se recompor. Seu senso de obrigação fez com que se esforçasse para se recuperar e engolir os soluções. “Minha vovozinha, queria, quanto você fez por mim, vovozinha…”.
Os alunos estavam todos na sala e estranharam o atraso da professora Edméia. Ela era pontual como um relógio eletrônico.
Ela entrou, engoliu o soluço e desculpou-se por ter de sair de imediato justificando sua urgência contando o que lhe aconteceu. Ela fitou atônita com a reação dos alunos, espantada mesmo. Sem pensar, sem nada dizer, pegou suas coisas e sais da sala correndo para se encontrar com sua irmã.
– X –
Depois do velório e do enterro da vovozinha, Clarice e a irmã Edméia tomavam café na sala do sítio onde se criaram.
Haviam chorado a noite toda e esgotado todas as lágrimas. Permaneceram ao lado do caixão por toda a interminável noite do velório, e por todo o ritual do enterro: o féretro levado a pé do velório para a Igreja Matriz, para a celebração da missa fúnebre, rezada padre que a conhecia a falecida desde que era criança, depois o cortejo a caminho do cemitério, a benção final, as despedidas, finalmente o enterre.
Edméia e a irmã estavam esgotadas física e emocionalmente.
Clarice resolveu desanuviar mudando de assunto, qualquer assunto.
– “E como vão as coisas na escola, Edméia?”
-“Horríveis, Clarice. Horríveis!”
-“Nossa Edméia! O que é isso? Você dizia que era muito respeitada, que conseguia ministrar todas as aulas do programa, que a moçada se comportava muito bem em suas aulas… o que aconteceu?
Edméia contou, então, sua odisséia em busca de uma solução para a sua incapacidade fazer a classe rir, enquanto outros professores, ela ouviu, conseguiam fazer alunos darem gargalhadas. Ela contou da sua longa pesquisa sobre o humor na literatura, a alteração do conteúdo programático do curso para incluir o humor, o pedido de aprovação da alteração junto ao Coordenador da Cadeira, a escolha dos mais hilários textos vertente do humor na literatura e a administração das aulas, cujo resultado foi totalmente negativo, porque ela não conseguiu fazer os alunos rirem.
Diante desse fracasso, contou então da decisão de freqüentar uma escola de palhaços, isso mesmo, Escola de Palhaços, pois inevitavelmente suas técnicas fariam os alunos rirem de suas “palhaçadas”.
– “Nossa, Edméia, você se sentiu mesmo desafiada, e pelo que te conheço, comprou a briga pra valer! Mas, então porque você disse que as coisas estão horríveis?”
-“Porque estão horríveis mesmo, Clarice! Depois do que houve ontem, do que os alunos fizeram comigo, amanhã mesmo vou pedir demissão. E contou por que.”
– XI –
No dia anterior, assim que o sinal do intervalo tocou pondo fim à primeira aula e Edméia foi chamada a atender um telefonema na sala dos professores, seus alunos saíram em grupinhos para o pátio. E começaram a comentar sobre o comportamento estranho da professora Edméia.
-“Você entendeu aquela coisa das folhas todas coladas, penduradas umas as outras”
-“Acho que foi acidente. Vai ver que caiu cola”
-“Acho difícil… parecia coisa preparada…”
-“Pra mim pareceu também…”
-“E aquela dela tentar pegar as folhas, toda desajeitada, e ficar olhando pros papeis e pra gente como dizendo… e agora”?
-“Achei até engraçado… mas a Dona Edméia é tão séria, que não entendi nada…
-“Eu, então, fiquei com vontade de rir… mas sabe como é, né!”
Aí, o Dirceu, que era irmão da bibliotecária, chegou junto ao grupo.
-“Ei turma, tenho uma fofoca: minha irmã me disse agora que a Dona Edméia nos últimos tempos tem pesquisado livros sobre humor, e nas últimas semanas perguntou sobre obras sobre palhaços, palhaçadas, coisas assim.
-“Caraca! Dona Edméia pesquisando isso?”
-“Turma, acho que agora eu entendi, explicou Sofia, que sentava na primeira fila (com expressão de que descobrira algum segredinho)”
-“Conta aí, pô!”
-“Lembram no finzinho da aula quando a Dona Edméia se ergueu depois de pegar os papéis no chão?”
-“Sim.”
-“Sim.”
-“Lembro, sim.”
-“Vocês se lembram daquele barulhinho?”
-“Qual barulhinho… eu não ouvi.”
-“Você estava lá pra traz, no fundão, mas eu ouvi também.”
-“Ah, um barulho de porta rangendo?”
(Riiiiinnnnggg – O sinal tocou encerrando o intervalo).
– XII–
Todos os alunos vão rápido para a sala de aula. Em menos de 5 minutos, entre o caminho do pátio e a sala de aula, a notícia se espalhou entre toda a turma.
Todos sentados. Quietos.
Dona Edméia, que acabara de receber a noticia do falecimento, antes de ir à sala, passou pelo toalete, lavou o rosto e tentou tirar o seu aspecto de choro. Retocou a maquiagem e conferiu no espelho seu aspecto. Lágrimas não mais escorriam, mas os olhos vermelhos não enganavam.
A porta da sala se abre e Dona Edméia entra, ereta, formal.
Posta-se diante da sala, respira fundo, e diz:
-“Meus caros alunos. Eu vou ter de sair imediatamente, de forma que não haverá a segunda parte da minha aula”.
Respirou fundo, criou coragem e começou a contar:
-“Acabo de receber a notícia de que minha avó, que apesar dos seus 96 anos, muito ativa e que ainda gostava de brincar, nessa idade, por causa de um gato, resolveu pular a certa. Ela conseguiu, mas morreu do coração.”
Nunca a escola ouviu uma sala dar tantas e tão fortes gargalhas.
FIM
(Este conto foi inspirado quando, numa palestra sobre criatividade e inovação
do professor José Predebon (88) ,na Miami Ad School – ESPM,
uma aluna (60+) declarou que tinha feito um curso de palhaço
para poder se comunicar melhor.)
Maio, 2019
(*) Escola de Palhaços da Cia Pé de Vento Teatro/2016; Módulo: Iniciação a Arte da Palhaçaria
(**) Curso de Palhaço com Paola Musatti
(***) Eslipa – Escola Livre de Palhaços
(****) Escola de Palhaços e Palhaças Oficina com Vanderléia Will
(*****) Escola de Palhaços Missionários