Literatura

Sobre os ossos dos mortos

Sobre os ossos dos mortos.    Olga Tokarczuk

Para o Clube de Leitura do Sírio

Nada sabia sobre o livro exceto que a autora recebera o Premio Nobel de Literatura deste ano (2019)

Não prestei atenção na ilustração da capa (só depois de lido é que me ative nas figuras e li a contra capa). Mergulhei virgem na leitura, pois penso essa condição evita pré conceitos.

A primeira frase já me fez as pupilas se ampliarem: “lavar os pés caso a ambulância precise vir me buscar”. Um humor refinado? Um pequeno flash crítico do comportamento de parte da população? Lavar “só os pés”? O que viria pela frente? Do que trataria esse romance?

Logo percebi o estilo descritivo, direto, mas também reflexivo. Simultaneamente a um relato realista, a autora transmitia o subjetivo da personagem, ao relatar suas sensações, emoções, reflexões, e através delas era possível compor a personalidade dessa senhora, de idade incerta, saúde duvidosa, doenças indefiníveis, cultura evidente, passado obscuro, manias presentes.

Qual seria o propósito da autora? Reflexões filosóficas sobre a morte? “… repentinamente me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador.” Ufa! “… ele era um saqueador da floresta, ah, seria um romance de denúncia preservacionista – afinal está na moda. Ou uma crítica à situação das ex-socialistas repúblicas da Europa – ainda em processo de adaptação (“… na República Tcheca…” parecia tudo melhor). Ou ainda se tratava da reafirmação da auto-suficiência feminista “… muitos homens desenvolvem autismo de testosterona…”. Poderia ser uma analise sobre a condição das idosas solitárias não muito saudáveis? (personagem assim parecia). Uma busca de interpretação literária ou relações inter-geracionais? Ou um romance de forças do além, onde espíritos de mortos se interrelacionariam com … astrologia – os fantasmas (a mãe…, as meninas…) e “os ossos dos mortos” do título autorizavam essa possibilidade.

Locais poderiam sugerir algo? – algo sobre vampiros contemporâneos? Na Transilvânia (sic) “… numa curva da estrada que Disio chama de Curva do Coração de Boi… porque viu caixa de vísceras cair de caminhões… e corações se espalharem pela estrada”. Ou ainda “Kudow e Lenwin, Nowa Ruda, Klodzko e Zabkowicw (*) que antes da guerra eram chamadas de Frankestein!!!

Ora, que importam as minhas expectativas! O que importa é que a narrativa prende a atenção pela maneira como entremeia o realismo descritivo dos ambientes e acontecimentos com as elucubrações filosóficas, literárias e astrológicas, sempre deixando no ar algo inconspícuo. (Lembrei-me da Renée, a concièrge de A elegância do ouriço, não porque também era zeladora de algumas casas, mas porque simplória, mas sábia).

Certas coisas tornam a personagem simpática, como a forma pela qual descreve as pessoas e a sua mania de rebatizar essas pessoas, passando a tratá-las pelos seus novos nomes (e, curiosamente, não soam como vulgares apelidos).

E que dizer de suas considerações sobre os nomes como o Swierszczynski (!); ou ainda pensamentos deixados em frases pontuais, como “pessoas… que dominam a escrita são perigosas”…”; “ … assim, retira da realidade a sua qualidade mais importante – sua inexpressividade.”;” a realidade envelheceu, e ficou senil…”;

Preso à personagem e as suas narrativas, me desprendi de querer saber qual a categoria do romance – ora, que importância isso faria se a leitura era agradável – e quando aparecem os aspectos policiais, me pareceram ser marginais – apenas elementos ocasionais. Enganei-me. Ou me enganaram.

Qual bolinha de fliperama em câmera lenta, a narrativa vai nos levando pra lá e pra cá, ora trivial como sorver uma sopa, ora profunda como as questões sobre Deus, amplas como o paisagem de neves, ou microscópicas ao ver os insetos. Ou brotos de urtiga.

Mas encontrei também um pouco de poesia: “… os indícios da primavera ainda não tinha chegado à cidade. Ela deve ter se acomodado nos arredores, nas hortas das chácaras, nos vales dos riachos…”; “… Imersa em silenciam floresta tornava-se um enorme e aconchegante abismo no qual podia me esconder”…

De tão eclética, até o nosso chupa-cabra aparece.

Bem, ao final, o livro… não vou comentar mais. Afinal, quem o leu sabe como termina. E para quem não o leu seria como comentar o fim do filme junto às pessoas na fila de entrada. Leiam e aproveitem a próxima sessão. É um Prêmio Nobel.

 

(*) conferi: todas as localidades, elas existem e pelas fotos são como os cenários descritos.

Na antiga Seleções do Reader´s Digest tinha uma seção: “enriqueça seu vocabulário”. Enriqueci o meu:

Samarra= casacão antigo, alguns de pele de ovelha coma lã.

Grevas = caneleira das armaduras

Cantarela= Espécie de cogumelo comestível

Pousio = repouso do terreno para próximo plantio

Serapilheeira= cesto feito de junco

Cambozola, piceas, tenebrismo = ???Significado não encontrado em nenhum dicionário consultado

Melolonta = tipo de besouro

Durião = fruto de árvore originária do sudeste da Ásia.

Ramequim = recipiente de cerâmica para cozer alimentos no forno.

Aedônio = tipo de pata de animal com um dátilo (tipo de dedo) e um espondeu (tipo de pata fendida)

 


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