Noites das mil e uma noites
De Naguib Mahfouz
Para o Clube de Leitura do Sírio
Estranho, tudo muito estranho. Não cheguei a uma conclusão sobre este livro. De princípio me pareceu um livro de contos infanto-juvenil. Como, aliás, o original parecia ser. Os pequenos contos contam estórias ocorridas em um passado e em uma cidade ambos indefinidos. Segundo a contracapa, o tempo era a Idade Média e o local uma cidade muçulmana, o que não quer dizer, obrigatoriamente, árabe. A primeira curiosidade despertada foi a linguagem dos personagens. Certamente o autor pesquisou para assim reproduzi-las e, provavelmente, se remete à língua coloquial e cultura árabes: impressiona a presença constante da religião em todas as expressões.
Já a fantasia não surpreende porque do pouco que sabemos sobre a obra original (aliás, ela deveria, mas não está no compêndio “As obras-primas que poucos leram” – quem já a leu?) ela é uma seqüência de estórias fantásticas. Porém, nestas “Noites das mil e uma noites” nem tudo ocorre à noite. Aliás, a coerência não é o forte desde a sua difusa origem: na origem o Sultão não era sultão, mas Xá, a língua não era o árabe, mas parse, sua divulgação e fama não parte dos árabes, mas parte de uma compilação de um francês, e os contos – um contado por noite – não daria para mil e uma, pois não chegam a 300. Mas quem está querendo coerência na fantasia?
Há uma comum: a narrativa é a narrativa da ardileza, dos estratagemas, dos enganos, das trapaças e trapaceiros. A esperteza impera, ou tenta imperar. A sutileza, nem sempre sutil, torna os espertos ou poderosos em inocentes infantis. E os puros em malfeitores. O caráter de muitos dos personagens muda aos extremos. Seria a afirmação da dualidade do ser humano? Curioso: a religiosidade e a moralidade caminham ao lado de uma crueldade e a uma aceitação servil ímpares. Reflexo ou crítica a cultura de uma época? Matar todas as moças possuídas, cortar a cabeça de inocentes, executar os adversários, liquidar com os crentes de outra facção religiosa parece que tudo isso é feito sem o ardor do ódio ou da vingança. O adversário é o inimigo. E inimigo elimina-se. Simples assim. Principalmente para quem tem o poder. Ao mesmo tempo, há uma permanente atitude de amor e compaixão. E sonhos, muitos sonhos.
À medida que fui lendo foi me passando a sensação de uma intenção em transmitir um sentido ou ensinamento ético, como uma “moral da estória” das fábulas ocidentais.
Embora a narrativa seja colocada num mesmo local (bairro) e época, a quantidade de personagens confunde e seus nomes confusos (para nó, e o que ajuda a identificação é a adição de epítetos: “chefe da guarda, “o louco”, “o milionário com cara de macaco”, “o corcunda”… (talvez um hábito da cultura?).
No terreno da fantasia tinham de aparecer os gênios que enriquecem as narrativas e justificam o maravilhoso: os “bonzinhos”, que buscam certa justiça – Sanjam e Kamkam – e os do mal que buscam o mal – Sakharbut e Zamabaha – casal que, apesar de maus, são pilantras gozadores (e até mais divertidos). Só que mesmo os bonzinhos, que buscam punir a corrupção das autoridades provocam assassinatos como justiça. Cheguei a pensar: se Sanjam e Kamkam resolvessem atuar aqui neste Brasil, ia haver muito corre-corre. E por falar em atualidade, pareceu-me certa premonição esta frase: “Sua majestade ordenou que todos vagabundos sejam detidos para escolher entre eles os que irão preencher os diversos postos (do governo). E o julgamento “faz de conta”? Seria um Al Lav Al Jahtho? E seria condenado um berbere mouro? E a CPI, ou melhor, interrogatória da Anis que justifica que os homens iam à sua casa para… “ discutir Direito Canônico e Literatura”?
Quanto às mulheres, não são valorizadas segundo os padrões do politicamente correto atual. Seus atributos são a beleza física e poder de sedução e ligadas ao sexo: sejam cortesãs, virgens ou nubentes. A submissão das mulheres é total, e seu papel é servir ao homem, embora alguns destes fossem subjugados pateticamente (“jogar-se aos pés”), mas provocam ruínas financeiras e assassinatos. Mas é tudo fantasia. Entretanto, dentro de toda a fantasia, principalmente nas partes finais do livro, os contos parecem querer transmitir valores morais, alguns princípios éticos e/ou religiosos, como as narrativas de Simdbad concluídas com aforismos pelo sultão.
Afinal, lá como cá, enfim as virtudes parecem ser valorizadas e vícios punidos.
Ou isso também é fantasia?