LITERATURA

Minha estreia entre filmes

 

 

O importante não é o lugar, mas o que acontece nele.

Cada avenida, cada rua, cada beco da cidade foi testemunha de acontecimentos

que fizeram a história de muita gente. Inclusive da sua.

Este é um pedaço da minha.

 

 

 

Em crônica anterior eu contei como saí do Jornal (O Correio Paulistano) na Líbero Badaró, para ir trabalhar com cinema (nas Produções CinematográficasRicardo Malheiros), na Ruja Martinho Prado esquina com a Rua Augusta.

Lembrando daquela época:até então, filmeseu só conhecia os vistos nos cinemas da Lapa: o Nacional (na Rua Clélia); o Tropical (na Rua Roma), e o Carlos Gomes (lá em baixo, na 12 de outubro), e nas matinês. Havia também os “pulgueiros” da época, como o Cine Jaraguá (nos altos da Rua Catão esquina da Tito)e no Cine Recreio (na Rua Engenheiro Fox, 62 – este com “cadeiras volantes”). E conheci também o Cine São Carlos, na Rua Guaicurus, tão antigo que ainda tinha até camarotes e frisas. Do “centro” só conhecia o Cine Metro, na Avenida São João, onde tinhaSessão Zig-Zag – só desenho animado – nas manhãs de domingo. E para ser justo, depois da missa dominical, eu via a sessão de cinema no Salão Paroquial, na Paróquia da N.S. da Lapa.

Assim, meus “vastos” conhecimentos de cinema eram os filmes que passavam nessas salas, nas matinês e na Zig-Zag.Algumas vezes, meu pai me levava à noite (ver filmes de meninos – bang-bang, espadachim, O Gordo e o Magro…)enquanto minha mãe ia com minhas irmãs a outro cinema, assistir a“sessão das moças”,(filmes para meninas – “água-com-açúcar”, no dizer de meu pai).

Para você ter uma idéia, naquela época (anos 50/60), numa única sessão em cinemas de bairro eram exibidos: vários trailers dos próximos longas-metragens;mais um cine-jornal com notícias diversas;mais o famoso “Canal 100” -com as melhores cenas dos jogos de futebol (e a trilha era sempre a música “Na cadência do Samba) e só aí passavamo “primeiro” longa metragem e depois o segundo – e principal – longa metragem.

E para cumprir uma lei, que obrigava que toda sessão onde fosse exibido um longa-metragem estrangeiro fosse também exibido um curta-metragem nacional, vemaí o mais importante: o “documentário” nacional. E é aí que eu entro.

Eu não estava mais sentado numa poltrona de espectador num cinema. Agoraestava numa cadeira de um escritório de uma produtora que fazia filmes. Não de longas-metragens, mas de documentários. A produtora nãotinha nada daquilo que eu imaginava ter uma produtora, como os estúdios de Hollywood ou mesmo da Vera Cruz, que eu ouvia falar. Nada de estúdios, nada de sets de filmagens, nada daquelas máquinas que elevavam a câmera junto com o operador (que depois aprendi ser a “grua”), nada de atores, nem de atrizes. Era só um conjunto de salas de escritórios, na sobreloja de um prédio residencial. Mas meu salário tinha dobrado. Então…

Conheci um “cineasta”: o senhor Ricardo Malheiros, o dono da produtora. Era um senhor- (40 anos ou 50 anos – o que já o tornava quase idoso na época) que falava um português de forma arrastada, que nem a verdureira que passava lá em casa, com um enorme cesto na cabeça. O “seu”Malheiros também usava um aparelho auditivo. Nada a ver com um “galã” hollywoodiano que eu imaginava que fossem.

Mas ele foi uma pessoa inesquecível para mim. Eu o colocaria na sessão “Meu tipo inesquecível” da Seleções do Reader´s Digest.

Ele era de uma elegância ímpar. Nos gestos, na postura, ao conversar, ao pedir, ao comer… um verdadeiro gentleman, e se trajava com as roupas e sapatos mais bonitos que eu já vira. E mais que isso: combinava tudo, cada peça, do lenço de bolso com gravata e com a meia,do tecido da camisa com o tecido do terno.

O “seu” Ricardo Malheiros se tornou para mim, o padrão de elegância e do bem trajar, até hoje. Descobrique comprava suas roupas na Mozano–a boutique masculina que ficava na esquina da Ipiranga com a São João (onde se situa o Bar Brahma). E ossapatos eram comprados na casa Dante -na Rua Marconi, ou na Sútoris – na Barão de Itapetininga. Como eu soube? Ora, eu era Office-boy. Faziatudo que me mandava, inclusive pagar as contas dele.

Naquele escritório havia várias salas. Eu cuidava delas (Office-boy também varria e tirava pó), procurando deixar tudo arrumado.

Aí eu tive a minha primeira experiência cinematográfica.

Numa das salas havia prateleiras de madeira que iam do chão ao teto. Elas tinham sido construídas para armazenar latas de filmes. Esclarecendo: os filmes em questão eram na bitola de 35 mm, ou seja, os rolos ficavam dentro de latas redondas, que tinhamuns 35 ou 40 centímetros de diâmetro, e uns 4 centímetros de espessura (como as caixas de pizza delivery de hoje).

Essas latas colocadas, na vertical, uma ao lado da outra,de maneira que em cada uma das diversas prateleiras formavam um longo cilindro.

Cada lata tinha esparadrapos colados, como uma etiqueta, compalavras que indicavam o conteúdo (nome do filme, tipo do material, data etc.)

O “seu” Malheiros tinha viajado, ficaria talvez mais de uma semana fora. Eu fiquei lá sozinho. Sem muito que fazer.  Cuidadoso, resolvi tirar o pó que se acumulava nas latas de filmes.

Com uma flanela, comecei pelas prateleiras de baixo. E fui subindo. Até que, quando estava limpando as latas lá do alto: medo! Eu me desequilibrei, tenteime segurar na prateleira de cima para não cair, mas a prateleira balançou: susto!

Eu e latas de filmes voamos para o chão: pavor!

Quando as latas caiam na vertical, com o impacto elas se abriam: terror!

Cada lata aberta eram metros de filme que pulavam para foram, se desenrolavam como as serpentinas no carnaval, misturando-se uns com os outros, cobrindo o chão.

Várias latas se abriram. Dezenas de metros de filmes se espalharam pelo chão, que ficou totalmente coberto de filmes desenrolados e misturados: desalento!

Havia latas com etiquetas que dizia “cópia”, “copião”, “negativo”: pânico!

Eu era o causador da destruição do acervo de uma produtora cinematográfica. Queria morrer ali. Eu não tinha saída. Ou me matava ou tentava reparava o que tinha feito.

Eu não me matei.

Eu tinha visto, quando fui levar alguma coisa a um laboratório, uma pessoa usando luva branca para mexer com os filmes. E no escritório havia uma gaveta com vários pares daquelasluvas feitas de um tecido que parecia flanela, muito macio. Fui buscá-las.

Com vontade de chorar, rezando e pedindo ajuda a Deus, tirei os sapatos, coloquei as luvas brancas e, arrastando os pés com todo o cuidado para não pisar em nem um filme, entrei na sala forrada de películas. Minha primeira intenção: pelo menos encontrar uma ponta de um filme.

Passei a chegar ao escritório antes e sair depois, para ficar o dia todo, de pé ou sentado no chão, catando e enrolando os filmes cujas pontas conseguia encontrar. Sem pisar, sem quebrar, sem riscar, sem misturar. Mãos doíam. Costas doíam. Pernas doíam. E o que mais doía: a consciência. Metro a metro, fui conseguindo enrolar de novo os filmes. Tinha que achar cada ponta. E quando achava mais de uma e os se enrolavam, tinha que desenrolar. E achando os botoques, ia fixando e tentando enrolá-los na ordem certa (do fim para o começo), fazia e refazia. Foram “apenas“ alguns dias nessa tarefa. Pelo menos uma semana. E acredito que cada filme foi colocado na respectiva lata. Como? Não sei. E nunca soube se troquei algum, colocando o filme A na lata do filme B.

Foi assim a minha entrada triunfal no mundo cinematográfico.

E foi assim a minha primeira experiência de cineasta.

Mas, a partir daí, eu tive outras e boas. E contarei no próximo “capítulo”.

 

P.S. 1 – O “Seu” Malheiros nunca soube desse fato. Agora, numa cadeira de diretor no céu, deve estar rindo, como fazia.

P.S. 2 – Muitos anos depois, com o auxilio da internet, pude saber como o Sr. Ricardo Malheiros tinha sido importante para o cinema português e ultramarino. Rendo aqui minha homenagem pelo que me ensinou e me proporcionou na minha adolescência e que permanecem em mim até hoje.

Para quem se interessar, acessem esses endereços na internet e saberão mais sobre esse grande cineasta:

http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143688628/Ricardo+Malheiro

https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Pessoas/id/12959/t/Ricardo-Malheiro

http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=3504&type=Video


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