O CASO MEURSAULT
De Kamel Daoud
Evito informar-me sobre o livro que vou ler.
Isso me proporciona o prazer da surpresa.
E não foi diferente neste caso, “O caso Meursault”.
Após algumas páginas lidas, em que gostava da maneira como o autor o escrevia, percebi que algo me trazia à lembrança – lembrança de quem tem a memória precária – é bom que se diga.
E como uma ingênua criança, percebi que as referencias eram o que eu realmente conhecia. Eu havia lido há tempos, o livro O Estrangeiro de Albert Camus.
E aí, à surpresa se adicionou do inusitado. Era uma ficção, que dava realidade a uma ficção, que, assim, a tornava real a outra ficção.
Criativo e inteligente o argumento d´O caso Meursault. Não sei como isso se classifica. Realismo ficcional???
O interessante, e que me causou admiração, é que o texto, da primeira a última página é um só monologo. Ou melhor, é um diálogo entre o personagem que falam, e eu ou você, leitor.
E quem “fala” esse diálogo é o personagem, o irmão “verdadeiro” da vítima assassinada pelo protagonista da ficção “O Estrangeiro”, do Camus. Uso o verbo “falar”, porque todo o texto é a reprodução da “fala” do personagem que, sentado na mesa de um bar, vai contando para o “personagem oculto” (eu, você, ou quem lê). Interessante a técnica. Prende a atenção e o texto flui como a fala de um ator competente.
E nessa fala ele, o personagem, conta a sua história. A história da família – mais especificamente da mãe e do irmão do “árabe” assassinado na obra de Camus.
O personagem de Camus que foi assassinado e sequer recebe um nome, é o irmão do personagem de Kamel, sobre quem recai toda a tragédia, e a indignação para com a incompreensível omissão do nome de seu irmão, a vítima d´O estrangeiro.
No livro “O caso Meursault”, a vítima de Camus recebe um nome: Moussa. E quem conta é seu irmão Haroun, indignado com a omissão do nome da vitima na obra de Camus, que é tratada de forma desumana, enquanto o autor do crime é valorizado.
As marcas das dores sociais causadas pela colonização francesa, a revolta e a revolução para a libertação e independência da Argélia, a vingança latente no povo, e a deterioração das novas lideranças, estão presentes na sua fala continua, e revelada toda a indignação Haroun, numa crítica ao anonimato e a desumanização do irmão na obra de Camus, abordando temas como justiça (ou falta de), identidade social, e o abandono da memória.
Revela ainda um permanente estado de luto do personagem, uma raiva contida e a indignação pela ausência de justiça.
A personalidade de Haroun, exposta pela sua fala, aparentemente simples, é complexa, na constituição de seus sentimentos relativos à família, particularmente à mãe, à nacionalidade, à comunidade próxima, ao ideário político, e até mesmo em relação aos elementares sentimentos de amor. Toda a complexidade do personagem é exposta numa narrativa simples, direta, objetiva, com poucas, mas profundas divagações.
É de uma narrativa tão eficiente, que me sentia como o seu interlocutor sentado à mesa de um bar na Argélia, da primeira a última pagina. Ou da primeira até última de sua fala.